Camisa 10, que anunciou recentemente que se aposentará da seleção em 2025, liderou os apelos por estrutura no início do século e foi protagonista das transformações que levaram o Brasil disputar a medalha de ouro olímpica 16 anos depois
“Chore no começo para sorrir no fim”. Mais do que um desabafo emocionado, as palavras de Marta após a eliminação do Brasil na Copa Feminina de 2019 são um retrato fiel da sua própria trajetória com a seleção brasileira. O sonhado ouro olímpico, em sua sexta e última tentativa, não veio, mas a craque de 38 anos pode se despedir das grandes competições com orgulho de ter sido testemunha – e, muitas vezes, protagonista – das transformações da modalidade nas últimas duas décadas1 de 5 Marta olha para medalha de prata conquistada em Paris, sua terceira na carreira — Foto: Franck Fife/AFP
Marta olha para medalha de prata conquistada em Paris, sua terceira na carreira — Foto: Franck Fife/AFP
Em 2002, quando Marta chegou à seleção, aos 16 anos, o futebol feminino brasileiro estava a quilômetros de qualquer sonho de organização. A Taça Brasil, primeira competição nacional feminina, organizada pelas federações estaduais, durou de 1983 a 1990. Três anos depois, surgiu um embrionário Campeonato Brasileiro da CBF, com apenas sete edições entre 1993 e 2001.
A geração de Marta surgiu durante o nada. As primeiras conquistas da seleção sob a batuta da ainda jovem camisa 10 ajudaram a expor um cenário que era totalmente invisível a todo o país, incluindo a imprensa esportiva.2 de 5 Marta comemora um gol pela seleção brasileira nas Olimpíadas de Atenas-2004 — Foto: Getty Images
Marta comemora um gol pela seleção brasileira nas Olimpíadas de Atenas-2004 — Foto: Getty Images
Não por acaso as entrevistas das jogadoras após as pratas nos Jogos Olímpicos de Atenas-2004 e Pequim-2008, assim como no vice na Copa do Mundo de 2007 e até na celebração do ouro nos Jogos Pan-Americanos do Rio-2007, são marcadas por pedidos desesperados por apoio e estrutura.
– O futebol feminino mostrou para o próprio país que a gente tem condições de estar no pódio, no lugar mais alto. Nossa esperança é que isso não pare por aí, tem muita menina querendo jogar, muitas Martas, muitas Formigas, muitas Danielas. A gente está aí junta na luta para que isso venha acontecer, para que a gente possa ter uma liga, a gente possa ter uma estrutura melhor aqui no Brasil – desabafou Marta na cerimônia de entrada na Calçada da Fama do Maracanã, logo após a conquista do ouro no Pan 2007.3 de 5 Marta com a medalha de ouro no Pan-Americano 2007 — Foto: Getty Images
Marta com a medalha de ouro no Pan-Americano 2007 — Foto: Getty Images
Aos 21 anos, eleita no ano anterior pela Fifa a melhor jogadora do mundo, Marta não advogava em causa própria. Desde 2004 ela já desfilava seu talento nos gramados europeus, defendendo o Umea, da Suécia. Suas cobranças era em nome das que precisavam de oportunidade no país.
E Marta começava a descobrir o poder da sua voz. Naquele mesmo 2007 foi criada a primeira Copa do Brasil Feminina. O Campeonato Brasileiro, hoje cada vez mais uma fonte inesgotável de revelação de talentos, surgiu em 2013, sempre a reboque da pressão feita pelos grandes nomes da seleção brasileira, Marta à frente.
Um mês após o Pan do Rio, a seleção feminina chegou pela primeira vez à final de uma Copa do Mundo Feminina, mas parou na Alemanha. Marta, que perdeu um pênalti na derrota por 2 a 0, lamentou outra chance de título perdida.
– A gente está se acostumando com o segundo lugar – disse ela depois da decisão.
Novo apelo na Rio-2016: “A gente precisa de vocês”
A última chance de ouro daquela geração veio nos Jogos de Pequim-2008, com mais uma dura derrota para os Estados Unidos na final – 1 a 0, na prorrogação. Marta e suas colegas de seleção começavam a sentir o peso de uma responsabilidade que não devia recair sobre os seus ombros: em uma total inversão de prioridades, parecia que o Brasil dependia do sucesso da seleção feminina para começar a dar valor à modalidade.
– Eu não sei o que acontece com a gente nas finais. A gente joga os outros jogos bem, faz os gols, e hoje a bola passava ali na área e não tinha ninguém para chutar. O que dói mais é que a gente teve outra chance de ganhar o ouro e desperdiçamos – lamentou Marta após a derrota nos Jogos de 2008.
Nos 16 anos seguintes, Marta não precisou encontrar explicação para as medalhas de prata. O Brasil nunca mais esteve sequer perto de uma final. Pior, passou a ser assombrado pelo fantasma do mata-mata. Em cinco das seis competições de elite seguintes (Copas e Olimpíadas), o Brasil foi eliminado logo após a fase de grupos: Mundial-2011, Olimpíadas de Londres-2012, Mundial-2015, Mundial-2019 e Olimpíadas de Tóquio-2020 (disputadas em 2021).
Nos Jogos do Rio-2016, o Brasil passou das quartas de final nos pênaltis, mas caiu na semifinal, também nas penalidades, e perdeu também a disputa do bronze. Mais uma vez, coube a Marta o papel de resumir o sentimento da equipe, após a derrota para a Suécia na semifinal. E, como de hábito, um misto de agradecimento e apelo:
A gente conseguiu encher os estádios, eu acho que isso é o maior prêmio para a gente. É lógico que a gente quer subir ao pódio, mas o reconhecimento, ser aplaudida em todo lugar que a gente passa, é isso que a gente vai levar. E peço aqui ao povo brasileiro, não deixe de apoiar o futebol feminino. A gente precisa muito de vocês.
4 de 5 Marta comemora um gol pelo Brasil nos Jogos de Pequim-2008 — Foto: AFP
Marta comemora um gol pelo Brasil nos Jogos de Pequim-2008 — Foto: AFP
Advogada global por igualdade de gêneros
A competição seguinte, a Copa da França-2019, apresentou ao mundo um novo perfil da craque brasileira. Um ano após ganhar seu sexto prêmio de melhor do mundo, Marta viu o Brasil parar novamente no temido mata-mata. Sabendo que, aos 34 anos, era hora de começar a preparar seu legado, deixou as palavras que iriam marcar o início de uma nova fase do futebol feminino no país.
A gente tem que chorar no começo para sorrir no fim. É querer mais, é treinar mais, é se cuidar mais. É estar pronta para jogar 90 e mais 30 minutos, quantos minutos for. É isso que eu peço para as meninas. Não vai ter uma Formiga para sempre, não vai ter uma Marta para sempre, não vai ter uma Cristiane. O futebol feminino depende de vocês para sobreviver. Então pense nisso, valorize mais. Chore no começo para sorrir no fim.
A maior artilheira das Copas do Mundo, com 17 gols, assumia seu lado ativista. Experiente e consagrada mundialmente, sabia que o sucesso do futebol feminino dependia, sim, de apoio e estrutura. Mas era necessário que todas estivessem prontas para o próximo passo. Se de um lado cobrava profissionalismo das próprias jogadoras, por outro expunha o abismo invisível que separava as mulheres dos homens no futebol de elite.
Marta jogou a Copa de 2019 sem um patrocinador pessoal, por não concordar com o valor oferecido por uma fabricante de material esportivo. Aproveitou a ausência de uma marca para pintar na chuteira preta o símbolo do movimento Equal Pay, por equidade de pagamentos entre homens e mulheres no futebol. Ao marcar o gol do Brasil contra a Austrália, apontou para a chuteira. Marta também sabia falar com os pés.
– Quando se tem igualdade de gênero, tem tudo. Quando eu faço um manifesto pedindo igualdade, é porque está muito abaixo daquilo que a gente merece. Eu não estou pedindo igualdade, como muitos dizem, que ela quer ganhar como um Cristiano Ronaldo ou um Messi, não. Eu quero igualdade, você tem que ser reconhecida conforme aquilo que você desempenha. Que todas nós possamos dar continuidade a isso, que essas meninas continuem lutando e ao mesmo tempo trabalhando por melhorias – afirmou ela.
Eu cheguei na seleção já ouvindo essa história de que tem que ganhar para mudar as coisas, tem que ganhar para ser melhor. Sempre tem que ganhar, mas também tem que valorizar, tem que apoiar e tem que estruturar. Não adianta querer esperar que ganhe para depois fazer isso. Uma coisa leva a outra, e que isso aconteça realmente.
5 de 5 Marta mostra o símbolo da igualdade de gênero na chuteira durante a comemoração do gol do Brasil contra a Austrália na Copa do Mundo Feminina — Foto: REUTERS/Jean-Paul Pelissier
Marta mostra o símbolo da igualdade de gênero na chuteira durante a comemoração do gol do Brasil contra a Austrália na Copa do Mundo Feminina — Foto: REUTERS/Jean-Paul Pelissier
A contratação da sueca Pia Sundhage para dirigir a seleção brasileira, após a Copa de 2019, trouxe novos processos de trabalho. A bicampeã olímpica com os EUA (Pequim-2008 e Londres-2012) iniciou uma renovação na seleção brasileira. E novamente Marta teve papel importante, ao entender que era hora de abrir espaço para as novas gerações.
Marta ficou no banco nos dois primeiros jogos do Brasil na Copa Feminina de 2023, a goleada sobre o Panamá e a derrota para a França. Foi titular mas não jogou os 90 minutos no empate com a Jamaica que causou a surpreendente eliminação na fase de grupos. O fracasso não tirou a serenidade da líder da seleção:
– O povo brasileiro pedia renovação, está tendo a renovação. A maioria do time é de meninas que têm muito talento, que têm um caminho enorme pela frente. É só o começo para elas. Eu termino aqui, mas elas continuam. Eu quero que as pessoas no Brasil continuem tendo o mesmo entusiasmo de quando começou a Copa. Continuem apoiando. As coisas não acontecem de um dia para o outro. A gente está vendo aqui seleções que vinham para a Copa do Mundo que tomavam de sete, oito, dez, e agora jogam de igual com os grandes. Isso mostra que o futebol feminino está crescendo – disse a camisa 10.
Continuem apoiando. A Marta acaba por aqui, não tem mais Copa para a Marta. Estou muito grata pela oportunidade que tive de jogar outra Copa, e muito contente com tudo isso que vem acontecendo com o futebol feminino do nosso Brasil e do mundo. Continuem apoiando, porque para elas é só começo
A camisa 10, dessa vez, se enganou. A renovação seguiu em frente, sim, agora pelas mãos do técnico Arthur Elias. Mas ainda havia espaço para Marta, mesmo que ali ao lado, incentivando no banco de reservas. O que veio foi a prata em Paris, mas o ouro é o que merece Marta pela sua caminhada e trajetória com a seleção brasileira feminina.